Ensaios sobre a origem da vida
​O objetivo da pesquisa é avaliar os efeitos de condições adversas durante o período intrauterino e no momento do nascimento no desenvolvimento da criança, com ênfase em como esses efeitos diferem entre meninos e meninas.

A pesquisa se baseia na Teoria da Origem Fetal, que aponta para a importância do ambiente em que a gravidez ocorre. De acordo com essa teoria, eventos adversos durante a gravidez impactam no desenvolvimento fetal com consequências que podem se manifestar ao longo do ciclo de vida do indivíduo. O aspecto mais investigado na literatura aborda problemas na saúde na idade adulta. No entanto, evidências mais recentes apontam para problemas em outras dimensões do desenvolvimento, como cognitivo e não cognitivo.
Um aspecto menos investigado e de grande importância para a formulação de políticas públicas é a diferença que eventos adversos durante a gestação e no parto tem sobre meninos e meninas. Portanto, o objetivo geral da pesquisa é investigar como um choque negativo na gestação pode impactar de maneira distinta o desenvolvimento de meninos e meninas ao longo do ciclo de vida.
A pesquisa se divide em três objetivos específicos:
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No primeiro buscamos entender o efeito que o estresse materno durante a gestação tem no desenvolvimento infantil, tanto em medidas de nascimento quanto em medidas de desenvolvimento ao longo do ciclo de vida. E, principalmente, destacar os diferentes efeitos entre meninos e meninas;
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O segundo objetivo é avaliar os efeitos que um desastre de grande magnitude que ocorre durante a gestação tem em abortos espontâneos, sobretudo no aborto de fetos masculinos;
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Por fim, avaliamos um projeto voltado para a redução das cesarianas desnecessárias, bem como se a redução das cesarianas tem impacto nas medidas de nascimento. Novamente essa análise é realizada buscando entender os diferentes impactos em meninos e meninas.
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Metodologia
A pesquisa utilizou dados secundários tanto do Brasil quanto do Chile. Mesmo considerando o interesse no problema da primeira infância para o Brasil, o uso dos dados do Chile se justifica pela riqueza de informações disponíveis, que permitem entender aspectos do desenvolvimento infantil que os dados brasileiros não permitem. Para analisar os dados, fizemos uso de técnicas de análise de inferência causal para dados observacionais. Basicamente, são traçadas estratégias empíricas baseadas em quase experimentos, com técnicas econométricas de fronteira, como o controle sintético associado ao modelo de diferenças em diferenças.
Os dados do Chile foram utilizados buscando atingir o primeiro objetivo específico da pesquisa. Os dados são provenientes da Pesquisa da Primeira Infância, cujo objetivo principal foi acompanhar a realidade da primeira infância no Chile e estudar o processo de desenvolvimento infantil. Para isso, a pesquisa permite realizar um acompanhamento do desenvolvimento infantil ao longo do tempo e em diversas dimensões do desenvolvimento, como, cognitiva, não cognitiva e de saúde.
Para definir a exposição das gestantes ao estresse de forma exógena, utilizamos um terremoto de grande magnitude ocorrido no Chile no ano de 2010. Comparamos o desenvolvimento das crianças que estavam no útero no momento do terremoto com um grupo de crianças que tinham de um dia até nove meses de idade no momento do terremoto. Com essa estratégia, garantimos que o desenvolvimento pós nascimento dos dois grupos foi afetado por consequências do terremoto, o que os diferencia é o momento do ciclo de vida em que o possível estresse do terremoto ocorreu, no caso do nosso grupo de interesse, durante a gestação.
Para atingir os outros dois objetivos da pesquisa utilizamos dados do Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos (SINASC) do DataSUS. O SINASC apresenta informações da data e local de nascimento da criança, bem como informações sobre tipo de parto, sexo da criança, peso ao nascer, tempo de gestação e algumas características da mãe
O segundo objetivo busca avaliar o efeito de um grande desastre sobre a razão de sexo nos nascidos vivos. Utilizamos o rompimento da barragem em Brumadinho que ocorreu em janeiro de 2019. Verificamos se a coorte de nascidos vivos que no momento do rompimento da barragem estava no útero e em um dos dezessete municípios atingidos pela lama sofreu redução na razão de sexo. Apesar da razão de sexo ser uma medida estável ao longo do tempo, em pequenas populações ela pode sofrer oscilações naturais. Com o intuito de evitar que o resultado encontrado seja uma oscilação natural e não causado pelo desastre, utilizamos uma técnica de diferença em diferenças sintética que constrói uma região sintética com a mesma evolução ao longo do tempo da região analisada.
O último objetivo da pesquisa é avaliar o Projeto Parto Adequado. Para avaliar esse programa, além dos dados do SINASC, utilizamos as informações disponibilizadas pelo Projeto indicando os hospitais participantes, bem como a data de início das ações do projeto. Os hospitais participantes do projeto não foram aleatoriamente selecionados, portanto, utilizamos uma técnica de diferença em diferenças sintética para avaliar o efeito sobre a taxa de parto normal, peso ao nascer, tempo de gestação. Todas essas medidas foram avaliadas também separadamente para meninos e meninas.
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Resultados principais
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De uma forma geral, a pesquisa encontrou evidências de resultados negativos no desenvolvimento infantil em função de uma condição adversa na gestação e também da importância de buscar reduzir a alta taxa de cesarianas desnecessárias no Brasil. Adicionalmente, e acreditamos que seja a principal contribuição da pesquisa, os resultados indicam que tanto os efeitos negativos de uma situação adversa durante a gestação, quanto os efeitos positivos de um aumento na taxa de parto normal se manifestam de forma diferenciada entre meninos e meninas. Enquanto que situações adversas prejudicam a viabilidade de meninos no início da vida, aumentando a probabilidade de mortalidade e condições de nascimento prejudicadas, estas mesmas condições aumentam a probabilidade de problemas de desenvolvimento pós nascimento em meninas, principalmente em relação a questões comportamentais e de saúde mental. Na sequência relatamos de forma mais específica os resultados encontrados em cada uma das etapas da pesquisa.
A primeira parte da pesquisa analisa o efeito do estresse materno durante a gestação sobre o desenvolvimento da criança ao longo do ciclo de vida. Os principais resultados apontam para a existência de um tradeoff entre viabilidade e vulnerabilidade entre meninos e meninas em relação a um evento adverso durante a gestação, especificamente o estresse materno. Os primeiros resultados mostram uma sensibilidade dos meninos em relação às medidas de nascimento, eles são mais afetados do que as meninas no peso e tamanho ao nascer.
Já em relação às medidas de desenvolvimento pós nascimento, que indicam o aspecto da vulnerabilidade, os resultados demostram uma maior sensibilidade das meninas, principalmente no que diz respeito às habilidades socioemocionais e probabilidade de manifestar algum tipo de doença mental. Na faixa etária de 2 e 3 anos, as meninas que sentiram o efeito do estresse durante o período intrauterino apresentaram maiores problemas socioemocionais do que as meninas do grupo de controle. Importante destacar os resultados negativos em medidas relacionadas com ansiedade e depressão. Para essas mesmas medidas, não foram encontradas evidências de efeitos nos meninos. Resultados semelhantes já foram apontados na literatura epidemiológica e da biologia humana. Para a faixa etária de 8 e 9 anos, os resultados para as medidas socioemocionais continuam indicando um resultado pior para as meninas, no entanto, menos significativo do que na faixa etária anterior. As meninas também apresentaram piores resultados nas medidas de habilidade cognitiva. Já para a análise das condições de saúde, destaca-se o aumento na probabilidade dos meninos em apresentarem sintomas de asma, e o aumento na probabilidade de meninos e meninas manifestarem problemas de Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH), com magnitude maior no resultado das meninas.
A segunda parte da pesquisa explora os efeitos invisíveis de um desastre ambiental. Observamos que na coorte de nascidos vivos de crianças que foram afetadas pelo desastre durante o período embrionário ou fetal, houve uma redução na razão de sexo, com a proporção de meninas nascidas vivas maior do que de meninos. Esse fato indica que houve um aumento no número de óbitos fetais em função do estresse sofrido pelas mães durante a gestação. O resultado se mostrou mais forte quando olhamos apenas para os municípios mais próximos ao local do desastre. Isto mostra que a razão de sexo é sensível à intensidade do desastre. Quanto maior a alteração da razão de sexo em favor das meninas, maior o impacto sobre os óbitos fetais.
Dois mecanismos podem levar a uma redução na razão de sexo com consequências distintas para a saúde dos nascidos vivos. O mecanismo mais citado na literatura, principalmente em artigos na área de economia, se relaciona com a Teoria da Origem Fetal. De acordo com esta teoria, as gestantes e os fetos se adaptam às situações adversas, alterando a expressão de seus genes produzindo um fenótipo adaptado às situações de restrições. Essa adaptação implicaria em piores resultados no nascimento do bebê e problemas de saúde futuros. Por outro lado, alguns autores apontam para uma possível seleção positiva no útero em situações negativas. De acordo com essa literatura, existe um limiar de sobrevivência para os embriões e fetos. Se as condições de saúde do feto estiverem abaixo desse limiar, ocorre um aborto espontâneo. Na presença de choques negativos, esse limiar se torna mais alto, havendo um processo mais rigoroso de seleção no útero. Portanto, com essa alteração do limiar, os fetos mais frágeis não sobrevivem, e os nascidos vivos fazem parte de uma coorte positivamente selecionada. As evidências encontradas na pesquisa apontam que ambos mecanismos atuaram na redução da razão de sexo.
Já a última parte da pesquisa busca avaliar um programa voltado para a redução dos partos cesarianos desnecessários. Os resultados encontrados mostram que o programa obteve sucesso na redução geral das taxas de cesarianas dos hospitais participantes. A redução foi de mais de 25% em comparação às taxas de cesarianas do ano anterior ao início do projeto. Com o intuito de verificar a focalização do projeto, ou seja, se a redução nas taxas de cesarianas ocorreu para o público que realmente não possuía indicação clínica, foi realizada uma estimação apenas para os partos de gestações de baixo risco. Para este grupo, o efeito encontrado foi mais elevado, em torno de seis pontos percentuais, representando um crescimento de mais de 31% nos partos naturais em comparação com os níveis de 2014.
Além do efeito sobre as taxas de parto normal, também foram encontrados efeitos no tempo de gestação e no peso ao nascer. Em relação ao tempo de gestação verifica-se um pequeno impacto de menos de um dia no aumento da gestação. No entanto, apesar de pequeno, evidências apontam que, para gestações com menos de quarenta semanas, cada dia a mais no útero é importante no processo de desenvolvimento fetal. O peso ao nascer aumenta em aproximadamente dezessete gramas considerando todos os nascidos vivos e mais de trinta e cinco gramas para as crianças de parto de baixo risco.
Outro ponto analisado no artigo é, se em caso de cesariana, o procedimento foi realizado antes do trabalho de parto. Os resultados indicam que apenas para os partos de baixo risco obteve-se uma redução nessa prática. Realizar a cesariana apenas quando a gestante entrou em trabalho de parto é importante, pois mesmo que o bebê não receba alguns dos benefícios do parto vaginal, sabe-se que o parto está sendo realizado no momento correto, com o bebê já totalmente maduro.
Adicionalmente, verificamos se os resultados são diferentes para meninos e meninas. Notamos que o efeito sobre o peso ao nascer foi maior para os meninos enquanto que as meninas apresentaram um maior aumento no tempo de gestação. Esse resultado é condizente com a biologia humana. Os fetos masculinos utilizam comparativamente mais energia das mães em seu processo de crescimento e ganho de peso. Portanto, uma antecipação do parto ocasiona um maior efeito sobre o peso dos meninos. Já as meninas possuem em média um maior tempo de gestação. A antecipação do parto ocasionada por cesarianas agendadas faz com o efeito no tempo de gestação seja maior para meninas. É importante destacar que mesmo que as meninas sejam menos afetadas em relação ao peso, essa antecipação maior do parto pode impactar em outros tipos de problemas para a saúde das meninas que podem se manifestar em estágios mais avançados do ciclo de vida.
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Incidência em políticas públicas no Brasil
Os resultados encontrados na pesquisa têm um apelo direto sobre a formulação de políticas públicas para a realidade brasileira. Os resultados mostram em primeiro lugar a importância de se pensar em políticas públicas com foco em gestantes. O Brasil é um país com altas taxas de desigualdades sociais. Essa desigualdade se reflete em diferentes realidades em relação ao ambiente em que uma gestação ocorre no país. Mulheres que vivem em situações precárias, que enfrentam algum tipo de restrição, seja nutricional, de acesso a serviços de saúde, ou de acompanhamento psicológico necessário em função de algum trauma sofrido, terão um ambiente desfavorável para o desenvolvimento de sua gravidez. Todo esse cenário atua como um perpetuador das desigualdades brasileiras. Portanto, pensar em políticas públicas com foco na redução das desigualdades deve ser feito tendo em mente que as desigualdades entre as pessoas têm início antes mesmo do nascimento.
Um aspecto importante das desigualdades brasileiras se refere à questão de gênero. É consenso na literatura acadêmica e entre os formuladores de políticas públicas que parte da desigualdade de gênero, principalmente a apresentada no mercado de trabalho, é fruto de fatores discriminatórios. Mas existem aspectos da desigualdade que podem ser ocasionados por outros fatores, e os resultados dessa pesquisa indicam que um ambiente desfavorável na gestação tem efeitos diferentes entre meninos e meninas. As políticas públicas para a primeira infância devem ser formuladas levando em consideração as diferentes necessidades que meninos e meninas em situação de vulnerabilidade precisam. Encontramos evidências que os efeitos em meninos são mais visíveis, se manifestando em piores medidas de nascimento. No entanto, essa aparente menor sensibilidade das meninas é contrastada por problemas comportamentais e de saúde mental que podem se manifestar apenas em períodos após o nascimento.
A pesquisa também chama a atenção para possíveis efeitos invisíveis de um desastre ambiental, tanto natural quanto ocasionado por ações humanas. As consequências das mudanças climáticas estão cada vez mais presentes no nosso dia a dia, produzindo ondas de calor e eventos extremos ligados a aspectos hidrológicos, o que torna a ocorrência destes desastres mais comuns. Os efeitos diretos sobre a saúde humana são conhecidos. No entanto, menos conhecidos são os efeitos que ocorrem com as vidas que estão na fase intrauterina no momento em que um grande desastre ocorre. Já destacamos a importância de um olhar diferenciado para o desenvolvimento de meninos e meninas que tiveram alguma situação adversa em seu período intrauterino. Mas parte das gestações podem ter seu processo interrompido quando a gestante é submetida a um grande trauma. As vidas perdidas que ainda não tinham terminado seu período de desenvolvimento fetal devem ser levadas em consideração nas ações de reparação dos danos causados e indenização às vítimas. Além do fato que temos vidas perdidas, é necessário que se tenha políticas públicas voltadas para mulheres que sofreram de aborto espontâneo devido ao estresse causado pelo desastre. A perda de uma gestação pode trazer problemas de saúde mental para as mães que, caso não recebam a devida atenção, podem se refletir até mesmo em uma possível futura gestação.
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Contribuição para o problema da primeira infância no Brasil
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A pesquisa trabalha temas de fronteira na discussão da primeira infância, discutindo a origem da vida. Busca contribuir para um maior entendimento do desenvolvimento na primeira infância com foco nas condições em que se desenvolve a fase embrionária e fetal, destacando o papel desse estágio da vida no surgimento das desigualdades entre os indivíduos. Essas desigualdades começam a se manifestar no nascimento e ocasionam impactos diretos no desenvolvimento infantil e ao longo de todo o ciclo de vida.
A principal contribuição da pesquisa é apontar evidências dos diferentes impactos que um ambiente desfavorável na gestação tem em meninos e meninas. Apesar de já existir uma literatura da biologia humana e também das ciências sociais aplicadas que indicam que o período intrauterino é um período sensível para o desenvolvimento infantil, a dependência de gênero em relação a um evento adverso na gestação ainda é menos explorada, principalmente para o contexto brasileiro.
Vários dos resultados obtidos pelo estudo, como impactos diferenciados do estresse materno nos fetos masculinos e femininos e seus possíveis mecanismos, são de grande relevância para se pensar políticas públicas que melhorem as condições de vida na primeira infância, além de propiciar trabalhar a redução de desigualdades em sua origem.
Avançar no entendimento do desdobramento das condições em que uma gestação ocorre, é fundamental para se pensar o problema da primeira infância no Brasil. O país, de acordo com dados recentes, apresenta mais da metade da população infantil vivendo em situação de pobreza, considerando suas múltiplas dimensões, renda, educação, saúde, saneamento básico.
A primeira infância, especialmente o período de desenvolvimento fetal, é o melhor momento para investir buscando equalizar as oportunidades e reduzir as desigualdades sociais. Fomentar pesquisas e políticas públicas baseadas em evidências científicas com foco na origem do problema, é fundamental para enriquecer o debate sobre a primeira infância no Brasil.
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Autor: Igor Vieira Procópio